Imagine-se num parque de diversões.
Os brinquedos são rústicos, os ferros estão tomados pela ferrugem, as
crianças não se animam a brincar.
O parque fica no centro de uma grande
cidade numa praça repleta de enormes
e frondosas árvores plantadas na época
da inauguração, no final do ano
2012.
O cenário é o ano 2083.
É manhã.
Você está sentado num banco e seu olhar fixo parece observar
algo ou alguém
entre as árvores. De repente a sua concentração é desviada, seus pensamentos
são interrompidos por uma voz:
“O que você achou desta nova
invenção?”
Quem faz a pergunta esta de costas sentado num brinquedo,
desses, de girar.
Mesmo de costa você percebe que se trata de um homem,
calvo, magro, usando Jeans, tênis e camiseta. Porém, a voz não é masculina é
feminina, suave, boa de ouvir. Mais estranho ainda é o fato de que a voz
daquela pessoa não entra pelos seus ouvidos, ela vem de dentro da sua
mente.
“É um aplicativo revolucionário, não acha?”
O homem dá um
impulso com a perna esquerda fazendo o brinquedo girar para direita,
permitindo ver seu rosto. É familiar. É Steve Jobs, o fundador da Apple. O
criador do computador pessoal, facilitador da alta tecnologia, o inventor do
iPod, iPhone e do iPad. O mago da inovação está sentado bem ali, na sua
frente, conversando com você, mas de sua boca não sai qualquer som, a voz
simplesmente surge em sua mente.
“É a minha nova invenção.” – diz. “Um
aplicativo que permite escolher a voz de celebridades do passado num banco de
dados com nomes como Oprah Winfrey, Bruce Willis, Jim Carey ou Maddona. São
mais de três mil vozes para modelar. O aplicativo é gratuito, você pode
baixá-lo agora mesmo em seu iMind.”
O iMind é sucesso desde 2062.
Trata-se de um nano chip implantado na retina dos olhos e conectado
diretamente ao cérebro através do nervo ótico. É a versão contemporânea do
seu tataravô, o iPad, com a
vantagem de não precisar manuseá-lo com as mãos.
O iMind é subordinado ao pensamento. Tudo surge na frente dos olhos, basta
pensar. O sucesso e a evidente utilidade do nano chip conectado ao cérebro é
tamanho, que 90% da população mundial já o tem implantado e o utilizam sem
dificuldades.
Os idosos de 2082 foram os bebes que em 2012 manuseavam tablets
e smartfones.
Na praça havia muitas pessoas, mas estava silenciosa.
Jovens, adultos, crianças, homens e mulheres, todos em completo silêncio. Um
silêncio perturbador. Num banco do outro lado da área dos brinquedos havia
uma menina com um lindo vestido branco. Seu rosto estava sério, ela
parecia concentrada. Os olhos fixos, bem abertos pareciam olhar para algo
distante.
Próximo a ela havia um garoto de uns quatro anos de idade. Ele
estava sentado na calçada com os pés descalços pisando na areia. Ele
também estava sério, imóvel e também apresentava um olhar fixo voltado
para algum lugar. Ao seu lado, sentada num banco e igualmente imóvel estava
sua babá. Ela olhou para o garoto e sem dizer uma única palavra ele
se levantou, tirou a areia dos pés a ambos foram embora. A
atmosfera misteriosa e o estranho comportamento daquelas pessoas o deixa
intrigado.
Jobs, notando sua curiosidade comenta:
“O maior problema
continua sendo a falta de empatia.”
“Há algumas décadas, cientistas
descobriram que o produto da alteração química e estímulos elétricos
cerebrais geravam ondas eletromagnéticas passíveis de medição. Eles notaram
que de alguma forma
tais ondas eram interceptadas pelos cérebros de outras
pessoas. Nossos cientistas descobriram como decodificá-las. Criamos
aplicativos para comunicação mental que modificaram o comportamento humano.
Com o iMind qualquer profissional pode, com autorização, entrar na mente de
qualquer pessoa e oferecer produtos, serviços e aconselhamento. Redes sociais
e empresas de entretenimento saíram na frente possibilitando farta
conexão entre os bilhões de humanos. Os novos aplicativos de comunicação
mudaram
de tal forma a maneira como as pessoas interagiam que percebeu-se que
não era mais necessário falar. Isso foi há apenas uma década, hoje
os cientistas já encontram casos de jovens sofrendo alteração na
fisiologia
das cordas vocais. As pessoas se aproximaram virtualmente e se
afastaram física e afetivamente. Foi por isso que criamos este sistema
de alteração do tipo de voz. É para quebrar o gelo, para gerar
empatia.”
Perplexo, você olha para as pessoas ao redor e entende a razão
daqueles olhares fixos e distantes: todas elas estavam conectadas acessando
os aplicativos do iMind. Jobs continuou:
“Hoje, graças ao poder de
integração máquina-cérebro, as pessoas
são menos agitadas e mais focadas. No
começo do século a ciência
investigava a dificuldade de foco das crianças.
Era comum encontrar jovens
tomando medicamentos para o controle do que
chamavam de TDAH (transtorno de
déficit de atenção e hiperatividade). Hoje,
nossos jovens ficam o tempo
todo conectados realizando tarefas, pesquisando,
jogando ou interagindo com
sua lista de contatos. Se no início do século as
pessoas se queixavam de
falta de concentração, hoje temos seres humanos
altamente
concentrados.”
“Nossos jovens ficam mais tempo dentro de
casa e não precisam mais frequentar escolas. Temos sistemas completos de
alfabetização instantânea no iMind. Os pais não precisam brigar, exigir ou se
preocupar
com notas até porque não existem mais escolas, as últimas foram
extintas há uma década. Num mundo onde tudo pode ser aprendido virtualmente
com um simples pensamento, as pessoas praticamente nascem alfabetizadas.
Basta olhar fixamente para uma montanha, um monumento, folha de uma
árvore,
inseto ou qualquer parte do céu que algum aplicativo do iMind
iniciará uma aula completa com mais didática do que qualquer professor
pode atingir. Universidades viraram cursos de aperfeiçoamento e aplicação
de
teorias. Para ingressar nestas universidades nossos filhos não
são avaliados pelo que sabem – pois qualquer pessoa tem a acesso irrestrito
a tudo – mas pelo que fazem com o que sabem.”
“E o que aconteceu com a
memória humana? As pessoas não usam mais a memória?” – você
pergunta.
O sorriso de Jobs desaparece e em seu lugar surge uma expressão
tensa. A testa enruga e os olhos se movem de um lado a outro travando um
diálogo interno. Na verdade Jobs pesquisa a resposta em sua memória, não
na natural, mas numa grande base de dados chamada “Conhecimento
Humano”.
“Não usamos mais a memória. Hoje as pessoas se abastecem da
mesma fonte, de uma memória coletiva, acessível a todos. O romantismo
do passado, o saber de cor letras de músicas, poesias, histórias
foi
engolido pela necessidade de sermos práticos, rápidos, produtivos. O
ser humano atingiu o ápice do conhecimento, todas as perguntas
foram respondidas e todas as respostas estão disponíveis a quem quiser
acessar. Basta você se concentrar, pensa num tema e um orador virtual surge
diante dos seus olhos. Este orador especialista transfere para você
o conhecimento solicitado. Nós não precisamos mais da memória.
Nossos cérebros aprenderam a se ajustar. O progresso matou velhas e criou
as novas conexões.” – Concluiu Jobs.
Você se levanta do banco e fica
de pé. Esfrega as mãos. Elas estão frias. Você as aproxima da boca, como um
gesto de oração, pensa sobre tudo o que Jobs disse e se lembra do “orador
virtual”. Você levanta o
rosto e foca seu olhar diretamente nos olhos dele.
Jobs começa a sorrir. Ele leu seus pensamentos, sabe qual é o comando. A
imagem do corpo dele começa a tremer e distorcer como uma imagem de televisão
quando perde o sinal.
Jobs desaparece.
by Renato Alves – Preparador
Mnemônico
www.renatoalves.com.br
Colaboração de Daniel Leocadio.
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BOA SEMANA AMIGOS